quarta-feira, 16 de maio de 2018

É ético divulgar o nome das vítimas de crimes humilhantes?


Inocentes que sofrem violência passam por uma segunda dor
ao terem o nome estampado nos meios de comunicação
“Detesto as vítimas quando respeitam os seus algozes”.
Jean Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês.
I. foi estuprada no consultório, P. foi seviciado pelos assaltantes diante dos fi lhos, J. foi castrado pela namorada num motel. Eles são vítimas de crimes hediondos e ultrajantes, mas seus nomes resplenderam nos jornais e revistas, nas TV e nas rádios como uma mercadoria bizarra que os meios de comunicação insistem em servir ao público. Publicar o nome da vítima — às vezes também foto e imagens, na TVs — é indispensável para a compreensão do episódio? Alguns casos momentosos fornecem um não como resposta. Tome-se como exemplo o incidente ocorrido no motel Status, de Vitória (ES) em, 5/11, quando uma moça de 17 anos decepou a faca o pênis do namorado. Parece não ter ocorrido a nenhum jornal que omitir o nome da vítima de incidente tão humilhante não comprometeria a notícia, e que a exposição do infortunado à curiosidade do público produz uma revitimação. A omissão do nome significaria um zelo ético e não censura, de vez que o comerciante castrado não era uma celebridade ou autoridade (de privacidade relativa), nem pessoa — um príncipe sem herdeiros, por exemplo — cuja castração interferiria nos assuntos públicos.
A prática da imprensa de escancarar o nome das vítimas pode ser discutida à luz dos comentários que o presidente Fernando Henrique Cardoso fez na África do Sul sobre o projeto da nova lei de imprensa que está em debate no Congresso Nacional. “Não acredito que uma lei seja capaz de impor ética ou normas de comportamento. É muito mais importante motivar as pessoas a se comportarem do que obrigá-las com a lei”, disse FHC (Jornal do Brasil, 28/11). Afora a derrapagem sociológica atribuída ao presidente (se há uma coisa que as leis fazem é impor normas de comportamento), ele sutilmente convidou a mídia a pautar-se pela ética.
O problema é que a mídia tem mais apreço pela lei do que pela ética. Se a lei veta uma informação, a mídia (às vezes) acata a proibição. Se a lei é omissa, deixando para a imprensa a decisão ética de dar ou não a informação, a tendência é espetacularizar o que deveria ser protegido pelo menos em respeito à dor da vítima. O que se discute não é o direito de publicar, mas a conveniência de divulgar. Se usa a liberdade para aguilhoar cidadãos inocentes de forma tão vexatória, a elite da imprensa nivela-se aos pasquins sanguinolentos da metrópole e aos jornalecos do interior que se nutrem da miséria alheia e agigantam nas manchetes o que deveria ser resguardado como privativo.
O caso de Vitória forjou uma situação tragicômica: o nome da vítima foi divulgado e o da criminosa — ela foi condenada a três anos de recolhimento num reformatório —, abreviado; tem 17 anos e o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a identificação completa de menores de 18 acusados de praticar delitos. Nesse aspecto a imprensa cumpriu a lei — protegendo-se de uma possível punição que, no caso dos jornais e revistas, pode ir até a apreensão dos exemplares. Mas no quesito ética, que depende apenas dela mesma, a imprensa não se controlou e mais uma vez brutalizou-se ao publicar o nome e o endereço comercial da vítima.
A identificação completa significa, no Brasil, constrangimento no emprego, trotes no telefone, chacotas na rua. Os parentes, sobretudo os filhos pequenos — vítimas em dobro — ficam sujeitos à solidariedade de uns, mas também à crueldade de outros. Mulheres violentadas são importunadas por desequilibrados que perguntam se elas gostaram e lhes fazem propostas obscenas. Muitas delas ainda passam por uma tragédia suplementar, a do aborto.
A vergonha de denunciar o estupro, que o movimento feminista tenta superar em favor da queixa policial, ainda imobiliza. Segundo pesquisa do médico Aníbal Faundes, da Universidade de Campinas (Unicamp, SP), citada pela Folha em 1/12, a polícia anota duas mil queixas de estupro por ano nas cidades de São Paulo e Rio. O pesquisador suspeita que esses números são apenas 10% das agressões; no Brasil o total de estupros somaria 20 mil por ano, dos quais 18 mil não seriam comunicados às autoridades. As mulheres se calam para evitar constrangimentos na polícia e o show da mídia.
A prevalecer o figurino, é de se apostar que haverá burburinhos indiscretos em frente à loja do comerciante de Vitória, se ele adotar um comportamento recatado, diferente do desinibido americano John Wayne Bobbit, vítima de crime idêntico em 1993. A mulher dele, Lorena, cortou-lhe o pênis com uma faca, mas Bobbit faturou a castração: foi a shows da TV e ganhou US$ 1 milhão com um filme pornográfico, no estilo nacional americano de extrair dinheiro da desgraça.
Minimizar o dano é a palavra de ordem nesses casos. Um dos desvios da mídia tem sido o assédio impiedoso às vítimas de crimes (leia no n° 10, “Paixão jornalística x compaixão humana”). A reportagem não deve agravar o mal, dando à tragédia uma dimensão pública corrosiva à reputação e à vida comunitária da vítima. Se o fato é notícia, a mídia deveria cuidar para que a vítima do crime não seja punida com um golpe publicitário tão indelével quanto o original. O comerciante de Vitória teve o pênis reimplantado, mas dificilmente vai limpar a imagem enlameada pela mídia.
Jornalistas atuam nesses casos com o piloto automático ligado na insensibilidade. Os infortunados, ainda que à revelia, sem que tenham contribuído ou concorrido para a própria desgraça, são tratados com indiferença. A proposta de omitir nomes talvez seja tomada como um insulto à liberdade de imprensa, mas no caso de estupro de mulheres há um antigo debate entre jornalistas sobre a conveniência da identificação. Nos Estados Unidos, uma pesquisa feita nos anos 80 por Carol Oukrop, da Universidade do Kansas, indicou que 67% dos editores achavam que era correto não identificar a vítima. Entre os que identificavam destacava-se o argumento de que os jornais não devem censurar nomes. Argumentava-se ainda que a divulgação do nome da mulher estuprada colocava-a judicialmente em pé de igualdade com o acusado — cuja biografia é rotineiramente publicada.
Um caso ficou célebre em Raleigh, na Carolina do Norte, quando uma moça branca acusou um rapaz negro de tê-la violado num parque de exposições. O jornal local, News and Observer, publicou o nome dos dois e isso permitiu que outros rapazes fossem à polícia testemunhar que tiveram relações sexuais com a moça no mesmo dia — a convite dela. O réu foi inocentado e, mais que isso, segundo o editor Claude Sitton contou a Eugene Goodwin para o livro Ética no jornalismo > Procura-se, escapou de um linchamento. A experiência americana tem mostrado, no entanto, que é possível processar o acusado de estupro sem identificar a queixosa. A polícia de Nova York tem um código para essas vítimas — todas elas são chamadas de Jane Dole — e a imprensa local respeita o anonimato.
A posição majoritária contra a divulgação do nome de vítimas de estupro leva em conta que o estigma da publicidade é tão devastador quanto a agressão física. Cabe sim à mídia decidir se será o segundo algoz e revitimar uma pessoa abalada pela tragédia — e o nome disso é conflito ético. Mas só se pode chamar a isso de ética quando a omissão é de livre arbítrio dos editores e adotada para proteger a pessoa da rapinagem pública, como seria razoável no episódio da castração.
Um caso interessante para se contrapor ao de Vitória foi o de uma “motorista” de Salvador que entrou no carro errado e dirigiu-o durante uma semana achando que era o seu. Enquanto o carro dela ficava estacionado no centro de convenções, a motorista distraída rodava com um Fiat branco já dado como roubado em queixa registrada na Delegacia de Furto de Veículos. A história mereceu reportagens bem humoradas nos principais jornais e revistas do país, mas um detalhe comprometeu a imprensa: a identidade da motorista. “O delegado titular, Sérgio Malaquias, preferiu não divulgar o nome dos envolvidos”, informou o Estadão. Ou seja, quando a polícia decide que nome vai sair no jornal, o editor entrega ao delegado a tarefa de ser ou não ético.
A polícia brasileira é especialista em condenar pessoas antes mesmo de instaurar o inquérito, mas eis um caso em que a mídia não poderia se deixar editar pelo humor de um delegado. Um jornal omitir voluntariamente o nome da “motorista distraída”, para livrá-la de constrangimentos, poderia ser um gesto nobre. Mas foi espantoso ninguém ter contestado o zelo — ou a censura? — imposta pelo delegado, nem desconfiado se se tratava de um caso de proteção. Rigorosamente, o delegado não poderia sonegar o nome, de vez que lavrara um boletim de ocorrência e a informação era pública. Pelo lado da polícia, o caso contrasta positivamente com a leviandade instantânea na divulgação de nomes de suspeitos — leviandade compartilhada e incentivada pela mídia, que imprime sem ressalvas as deduções e elucubrações da polícia.
Pelo lado da mídia, fica claro que a grande imprensa brasileira não tem política editorial para as vítimas. Age segundo a conveniência e teleguiada pelas fontes. No número passado, este boletim registrou como a Folha de S.Paulo identificou apenas com as iniciais uma estudante universitária seqüestrada e estuprada em São Paulo; a discrição foi justificada pelo jornal: os familiares pediram que o nome dela não fosse divulgado.
Os manuais da redação da Folha e do Estadão são omissos sobre o assunto. O do Globo promete a melhor política: “Tem direito à proteção do anonimato toda pessoa vítima de crime humilhante ou envolvida inocentemente em situação infamante, exceto quando ela própria (maior de idade e mentalmente sadia) abre mão dessa proteção ou por exigência excepcional do interesse público, a juízo do jornal”.
Eis uma boa intenção tostada no calor da notícia: o Globo identificou completamente o comerciante de Vitória. Posteriormente, o jornal demonstrou que era possível proteger a vítima. Na reportagem “Brasileira agiu seguindo o modelo de Lorena Bobbit”, na qual entrevistou psicanalistas sobre os motivos que levam uma mulher a mutilar o parceiro, o Globo cortou o nome dos personagens sem prejuízo real para o leitor: “O caso de Vitória, em que uma moça de 17 anos cortou o pênis do namorado com uma faca...”.
 
Boletim nº 12 Novembro-Dezembro de 1996
© Instituto Gutenberg

Nenhum comentário:

Postar um comentário