Ilustração de Paula Cardoso
Um
pastor evangélico da Praia Grande, no litoral de São Paulo, anunciou nas
redes uma receita infalível contra a Covid-19. A fórmula mágica,
segundo Waldeir de Oliveira, líder da Igreja Assembleia de Deus
Ministério da Missão, teria vindo de Israel: um gargarejo com água
morna, bicarbonato de sódio e limão. “Eu vou lhe ensinar a fazer. São
três ingredientes, é muito fácil. Pegue um limão, meio copo de água
morna e bicarbonato de sódio. Pegue uma colher de chá de bicarbonato,
ponha no copo de água e mexa. Depois, pegue meia banda de limão e
esprema com o bicarbonato no copo. E veja a reação”, ensinou Waldeir, em
um vídeo que viralizou nas redes sociais no início do mês.
“É para gargarejar, não beber. O
coronavírus fica quatro dias na garganta. Com o gargarejo antes de
dormir, todos os dias, você não pega o coronavírus”, garantiu o pastor.
Na receita, o limão pode ser substituído por vinagre de maçã, explicou.
“Se tiver alguém com garganta inflamada, multiplique esse vídeo para
todo o mundo no Brasil”, pediu o líder evangélico. Waldeir, com 7,5 mil
seguidores no Facebook, disse que sua igreja fez pregações por 23 horas
seguidas nos últimos dias. Sua denominação é uma dissidência da
Assembleia de Deus.
A fórmula salvadora para curar a
Covid-19 teria sido passada por um judeu, segundo o pastor, ao seu
irmão, residente nos Estados Unidos há 40 anos. “Os judeus mandaram essa
receita para todos os cidadãos de Israel. E a mídia não fala de Israel.
Lá, o coronavírus não está reagindo. Desde que começou a epidemia, lá
ele não se propagou”, afirmou Waldeir.
Até esta quarta-feira (20), foram
registrados em território israelense 16.659 casos de coronavírus e 278
mortes. A Embaixada de Israel, em Brasília, informou não ter
conhecimento de qualquer orientação a seus cidadãos sobre supostas
fórmulas para prevenir e combater a Covid-19. Sobre a tal receita com
água, bicarbonato e limão, o Ministério da Saúde no Brasil também
esclareceu não existir qualquer medicamento ou substância capaz de curar
a doença. Infectologistas consideraram uma “bobagem” e “sem sentido” a
sugestão do pastor. Após a repercussão de seu vídeo, o pastor Waldeir o
retirou das redes sociais. Procurado na segunda-feira (18), minimizou o
episódio. “Foi só um vídeo que fizemos para orientar a higiene bucal.” E
evitou mais comentários: “não tenho mais nada o que falar.”
O Ministério Público Federal e o
Ministério Público Estadual em São Paulo começaram a receber denúncias
sobre supostas curas da Covid-19 propagadas por líderes religiosos na
internet. O caso do pastor Waldeir, no entanto, não foi alvo de
procedimentos – ao menos até o momento – por parte do Ministério
Público Estadual ou Federal.
O
primeiro caso a chamar a atenção de procuradores e promotores foi o do
pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, que
estimulou os fiéis a plantarem sementes de feijão adquiridas em sua
instituição. Disse que elas teriam supostos poderes para curar o
coronavírus. Os fiéis eram estimulados a pagar entre 100 e 1 mil reais.
Valdemiro divulgou que as sementes poderiam “auxiliar na crise epidêmica
atual, fazendo alusão e ligação com suposto caso concreto de pessoa que
teria se curado de doença causada pelo novo coronavírus”, constatou o
procurador Pedro de Oliveira Machado, da Procuradoria Regional dos
Direitos do Cidadão em São Paulo.
O Ministério Público Federal
solicitou ao Google no Brasil, responsável pela plataforma de vídeos
YouTube, a retirada dos vídeos de Valdemiro. O Google atendeu ao pedido.
O MPF também enviou notícia-crime ao Ministério Público Estadual para
apurar possível prática de estelionato por parte do apóstolo Valdemiro.
Um pedido de investigação começou na Procuradoria da República em
Recife. Foi remetido depois para São Paulo, por ser o local da sede da
igreja, e ao MP estadual, por tratar-se de responsabilidade individual –
no caso, do apóstolo Valdemiro Santiago.
Nos vídeos, o líder da Igreja
Mundial não falou explicitamente em pagamento. Mas disse que a igreja
enviaria as sementes pelos Correios e os fiéis fariam “o propósito” de 1
mil, 500 ou 100 reais, para ter a bênção. Para a Procuradoria, ficou
claro o uso de influência religiosa e da mística da religião para obter
vantagem pessoal ou benefício para a Igreja Mundial do Poder de Deus,
“pois não há evidência conhecida de cura da Covid-19 por meio de alguma
divindade nem por ingestão ou plantação de feijões mágicos”. O
Ministério Público Federal, em nota, informou não ter intenção de
restringir a liberdade religiosa nem criminalizar a arrecadação de
ofertas de fiéis, mas também não poderia permitir que “indivíduos
inescrupulosos ludibriem pessoas vulneráveis e firam a fé pública”. A
Igreja Mundial negou a venda de feijões para curar a Covid-19. Disse que
“toda cura vem de Deus” e a semente seria uma “figura de linguagem”. O
valor da suposta venda não existe, segundo a igreja, por ser a oferta
espontânea, “a qual é dada de acordo com a condição e manifestação de
vontade de cada fiel”.
No início de março, a Igreja
Catedral Global do Espírito Santo, conhecida também como "Casa dos
Milagres", em Porto Alegre (RS), causou polêmica ao divulgar o anúncio
de um culto chamado "O Poder de Deus contra o Coronavírus". A igreja
prometia imunização contra a Covid-19 por meio de um "óleo consagrado". A
Polícia Civil abriu inquérito e está investigando o caso. O Ministério
Público do Rio Grande do Sul considerou o caso passível de enquadramento
em crime de "charlatanismo ou curandeirismo". O MP também abriu um
inquérito civil e notificou a igreja solicitando explicações. O pastor
Silvio Ribeiro, responsável pela igreja, foi ouvido pelo MP, se retratou
e comprometeu-se a não repetir o discurso. O inquérito do MP então foi
arquivado.
No mesmo mês, durante um culto, o
missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, disse usar “a
autoridade de Deus” para mandar o coronavírus ao inferno. “Mal, é uma
ordem! Pegue tudo o que é seu agora e vá embora! Eu exijo! Desapareça!
Solte essa vida agora. Eu estou mandando! Coronavírus, vá para o
inferno. Largue essa pessoa agora […] Em nome de Jesus Cristo, vá
embora! Acabou! A bênção chegou e todo mal está desfeito em nome de
Jesus Cristo!”, propôs R.R.
O
pastor David Mesquiati, presidente da Fraternidade Teológica Latino
Americana e da Rede Latino Americana de Estudos Pentecostais, explica
que recorrer à religião em busca de um milagre é um caminho normal e
natural em várias religiões e no cristianismo em geral. “O católico, o
luterano e os pentecostais oram pela cura. Buscar a cura milagrosa é uma
característica que todas as religiões possuem. A perspectiva de cura
por meio de uma intervenção divina é esperada. O problema é que alguns
transformam isso num produto”, observou Mesquiati, pastor da Igreja
Assembleia de Deus em Vitória (ES) e professor de Teologia e Ciências
das Religiões na Faculdade Unida de Vitória.
Crítico em relação às atitudes de
alguns colegas, Mesquiati ressaltou ser contrário a promessas e
garantias de cura por meio de um determinado procedimento ou em razão de
o fiel ser membro da igreja A ou B. “Isso beira o charlatanismo. E não é
isso o que se espera. Uma coisa é o discurso de esperança, orar e
esperar que haja uma intervenção divina, um possível milagre. Isso é uma
expectativa justa. Outra coisa é dar garantias de que isso vá
acontecer.”
Há diferenças, segundo ele, no
caso do bicarbonato com limão e na venda de sementes de feijão. “Tem
dois tipos de abordagem aí. Tem um que está tentando usufruir ganhos com
uma suposta cura [caso do feijão], e isso deve ser analisado. Outra
coisa é quando o pastor propõe um caminho de cura usando um chá ou
bicarbonato, ele passa do limite da ingenuidade.” Para Mesquiati,
haveria outras razões. “Pode ter uma maldade implícita, que é o
negacionismo da doença, da ciência. Isso é muito ruim, inclusive porque
ultrapassa as questões da religião, da esfera do que compete ao líder
religioso, ao prescrever tratamentos. É caso de falta de discernimento
sobre as áreas específicas de cada um. Não se deve avançar na área um do
outro, principalmente numa questão delicada e importante como a saúde”,
critica. “Isso pode estar no limite tênue entre a ingenuidade e a
maldade.”
O pastor também vê uma possível
motivação política. “Tem o negacionismo da atividade médica, da ciência.
Uma cegueira provocada por ideologia política. O sujeito fica cego lá
na frente e pode manipular a realidade. Pode achar que estão
prejudicando o seu político preferido e aí recorre a mecanismos não
comprovados. Passa a dizer que a ciência não vale nada.”
O caso de venda de produtos é
ainda mais grave, na avaliação de Mesquiati. “Aí é charlatanismo puro.
Ela aflora nos tempos de crise. E muitos se aproveitam dela. O primeiro
caso é mais velado, e esse é escancarado.” Pastor há 17 anos, o líder
religioso da Assembleia de Deus diz lamentar o caminho da negação da
ciência seguido por muitos colegas, seja de esquerda ou de direita,
segundo ele. “O pior é que a massa, o grosso dos fiéis, não vê
comportamento inadequado aí, não. Se você for conversar com qualquer
evangélico, ele se sente representado nessa fala. E, entre os católicos, também”, lamentou
Jornalista, é autor de “O Reino – a
história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal” (384 pgs,
Companhia das Letras)
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